[CRÍTICA] A Voz Suprema do Blues

Teatro e cinema são duas artes que coexistem desde a criação da última, e quando a magia dos palcos consegue ser transmitida dentro das telas se resulta numa bela obra. A Voz Suprema do Blues (Ma Rainey’s Black Bottom, no original), adaptação de Ruben Santiago-Hudson que beseia seu roteiro na peça de August Wilson, traz muito disso em sua essência, na direção de George C. Wolfe e na produção do grande Denzel Washington, o longa encanta do início ao fim em seus elegantes figurinos de época e suas teatrais ambientações.

O longa de Wolfe apresenta uma Chicago de 1927 onde conhecemos Ma (Viola Davis), a imponente Mãe do Blues que, junto a sua banda, se arrisca no mundo dos brancos para gravar um disco. No primeiro ato, o diretor nos faz íntimos dos quatro músicos que tocam para Ma em conversas alegres e discussões precipitadas que os colegas desenrolam, Glynn Turman (Toledo) e Michael Potts (Slow Drag) pouco se destacam em todo o filme, mas ainda sim conquistam com sua simpatia e personalidade. Os diálogos aqui são liderados por Levee Green (Chadwick Boseman) e Cutler (Colman Domingo), que transitam numa estrada de assuntos como passados, religião e a música pela qual vivem.

Tais diálogos paralelos entre ambos os personagens trazem ritmo em suas cenas que encantam tanto com o blues tocado no filme e de fato mostram quem são os músicos: aglomerados de histórias e situações que não necessitam serem mostrados, mas trazem emoção na narração dos atores. Na sala única onde estão os residentes, Levee é um jovem que pensa muito mais além do que tocar para a Mãe do Blues e Cutler é o completo oposto, sempre defendendo sua chefe e construindo a personagem como uma entidade, “Só conta o que Ma diz”, ele sempre repete, é a perfeita preparação do espectador para o próximo ato. 

Sempre uma perda triste e chocante de alguém que ainda tinha muito para mostrar, Chadwick Boseman apresenta uma de suas melhores atuações na pele do garoto Green, um jovem com um passado forte que se leva pela intuição e audácia. Em tela, o tolo personagem traz pensamentos às vezes fortes às vezes exagerados que trazem consequências a trama, ele é de uma ousadia que dá ritmo a trama, mas o faz ser um personagem para não ser gostado, todavia, sua audácia que caminha na linha tênue entre perigo e coragem faz a balança de carícias dos personagens mudar quando os conhecemos mais profundamente.

Entrementes, dito e feito, a entrada de Viola Davis em cena é como uma deusa entrando em seu templo, ela é forte, imponente e sabe como dominar o lugar, a combinação perfeita entre atuação, figurino e a poderosa maquiagem. Na tensão que Ma traz em tela, vemos até a paleta de cores mudar, cores quentes dominam o ambiente e aumentam a temperatura, o clima, tanto atmosférico quanto emocional, é quente, a calorosa demonstração do estresse e da pressão que se passam dentro daquele estúdio. A Mãe do Blues aparenta ser de uma exigência extrema ao início, mas nada mais é que uma forte mulher negra que não venderá sua poderosa voz para homens brancos tão banalmente, ela sabe o que precisa fazer para ter o que quer, até porque, no final das contas, A Voz Suprema do Blues é o retrato da triste realidade onde a sociedade negra precisa aprender a sobreviver entre a supremacia branca, cada um a sua maneira. 

É neste ponto que vemos como Levee e Ma são iguais distintos que lutam pelo seu espaço na sociedade branca, na personagem de Davies uma visão mais aprofundada de alguém que já está nesse meio há um tempo e como essa supremacia é tóxica ao ponto de quase apagar a própria personalidade e com Boseman vemos uma mente mais jovem que está no começo desse processo, sofrendo com o baque da injustiça. Interessante como entre esses dois papéis fundamentais na narrativa, Cutler consegue ganhar seu espaço na trama na boa atuação de Colman Domingo como um elo que trabalha entre Ma e Levee numa coerência mútua para ambos os lados, um apaziguador das duas partes. 

Talvez a única falha de George C. Wolfe em seu filme fique em seus últimos momentos, um final abrupto que entrega com êxito a forte mensagem que o diretor queria passar, mas pouco entrega emoção onde deveria, nunca por erro do elenco mas sim pelo roteiro brusco, um desfecho funcional teatralmente, mas não muito prático no cinema. Sendo este um único ponto a ser discutido, mas quase nada aparente no todo da obra, A Voz Suprema do Blues entrega com louvor seu recado e conta a história onde as pessoas são o mais importante da trama, mesmo com ambientação e narrativa se passando em 1927, a discussão presente nos diálogos é (e espero que não para sempre) atemporal. 

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